Alternar-se
O corpo é um campo de forças em constante oscilação. Pulsa, responde, silencia, desregula-se, move-se. Alternar-se entre o que se sente e onde se sente. A série de fotografias, os vídeos e o áudio que fazem parte desta obra versam sobre os efeitos da relação corpo-mundo. Entre o mel e o sangue, Ruchita constrói uma experiência íntima e inevitável: a partir da diabetes, condição herdada, inscrita na carne como um legado involuntário — os trabalhos mergulham na dialética entre controle e escape, na coreografia dos picos altos e baixos que atravessam a biologia e a psique.
Para Emanuele Coccia, em Metamorfoses, “certamente, somos um pedaço desse mundo, mas um pedaço do qual tivemos que mudar a forma. Nós somos um punhado de átomos e corpos que já estavam – todos – aqui e aos quais nós quisemos, pudemos, tivemos que impor uma nova direção, um novo destino, uma nova forma de vida”. Alternar-se é, assim, um estudo da subjetividade. A artista nos convida a pensar o “eu” não como unidade coesa, mas como um sistema de múltiplas presenças, sempre em negociação. A psicanálise já nos ensinou que o sujeito é uma tessitura de instâncias, de desejos e de contradições. Não somos um, mas uma multiplicidade que se alterna, se substitui, se equilibra precariamente entre identidades momentâneas. Como o corpo diabético, que nunca encontra repouso absoluto, os “eus” deslizam entre estados, tentando regular-se na fluidez instável da existência.
Nas imagens, nos sons e nos movimentos dos vídeos (de escorrer, de repousar, de contar, de subir, de extravasar) esse descompasso se revela. Ecos de uma voz que oscila entre comando e murmúrio. Reflexos que se deformam na superfície do mel — GRITAM. O corpo da artista performa esses “eus”, entre aqueles que impõem e aqueles que se diluem. Não estamos falando de um tempo linear, e sim do tempo que se curva, que se repete e que, sobretudo, se descontrola. Somos convocados, assim, a reconhecer no outro a oscilação que também nos atravessa.
Alternar-se
Trechos de múltiplos elementos do projeto
Alternar-se é sempre um meio (nunca um fim, nunca um começo), é um ensaio visual e sonoro sobre a vulnerabilidade e sobre existir como campo de batalha entre a permanência e a dissolução, entre o amargor do que julgamos doce e o que escapa entre os dedos. Se o sangue, portador da vida, é também portador do erro, o mel, com sua viscosidade luminosa, surge como metáfora ambígua: alimento e veneno, remédio e excesso. A doçura… ela transborda. A oscilação entre esses polos cria um espaço sensorial em que a repetição — seja do gesto, da palavra ou da imagem — não é estática, mas pulsante, um ciclo sem fim de ajustes e compensações.
O mel e o sangue (dourado e vermelho), esses elementos centrais, percebemos que são simultaneamente lisos e pegajosos, representam tanto a busca pela estabilidade quanto a tensão entre a suavidade e a dureza da existência. Suas materialidades espessas e viscosas refletem as dificuldades de navegação da própria vida. As substâncias agarram-se às superfícies e escorregam dela como um lembrete de que, apesar das quedas, há beleza na persistência.
Ao escrever-desenhar com o sangue, Ruchita estabelece uma comunicação direta e crua com o corpo, um corpo que é, ao mesmo tempo, recipiente e mensageiro. Esses desenhos, que nos fazem lembrar as escritas orientais, se tornam um processo de inscrição na própria carne, um meio de marcar o efêmero, de eternizar as cicatrizes internas que nunca são vistas, mas que insistem em existir. Na filosofia Zen, a impermanência é um dos três selos da existência, ao lado do sofrimento e da inexistência de um eu permanente. Tudo está em constante fluxo, nada permanece idêntico a si mesmo ao longo do tempo. Na escritura-desenho da memória e da hereditariedade que invoca um vínculo com as gerações passadas, com as histórias que nos formam e nos transpassam, há algo ancestral no trabalho de Ruchita, um eco de tudo o que é herdado, tanto no nível físico quanto no emocional.
No livroO atlas do corpo e da imaginação, Gonçalo M Tavares aponta que “um corpo são muitos sítios: há diversas possibilidades para a dor (ou para o prazer) se alojar num único corpo; o corpo não é uma unidade interna, pelo contrário: num sítio posso ter prazer, noutro dor – ao mesmo tempo. Como se o organismo vivesse, de facto, neste caso, duas vidas simultâneas (pelo menos).” Nesse sentido, esta série de trabalhos não é nem apenas um grito de dor — por aquilo que escapa ao controle —, tampouco um elogio à impermanência, ela é paradoxalmente ambas as coisas, ela é o existir, é a sensação composta de sensações simultâneas.
Limiares
2025, vídeo, 4’49’’, loop
Still do vídeo
Escape (1)
2025, vídeo, 2’25’’, loop
Still do vídeo
Escape (2)
2025, vídeo, 3’10’’, loop
Still do vídeo
Compasso
2025, vídeo, 4’35’’, loop
Still do vídeo
Abismo
2025, vídeo, 2’09’’, loop
Still do vídeo
Des-continuum
2025, série de 23 fotografias , dimensões variáveis
Instalação Fotográfica Des-continuum
Fotografias da série Des-continuum